O coração bate, fraco, até que um dia, subitamente, para. A morte súbita é o maior medo para os doentes que sofrem de cardiopatias e para os seus médicos, que tantas vezes se sentem impotentes perante este destino. Para a Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), em Portugal, cerca de 400 mil pessoas, as que se estima que sofram de insuficiência cardíaca, correm maior risco de passar por um desfecho deste tipo.
Ou seja, por outras palavras, que passem pela situação de um dia o seu coração chegar a um estado tão frágil que já não é capaz de desempenhar a função de bombear sangue para o resto do organismo. E é precisamente este desfecho que o Serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Maria quer evitar. Os médicos sabem que é uma verdadeira luta contra o tempo que tentam contornar com o sistema de alerta criado para sinalizar e identificar cada doente que entre no hospital, que faça exames e a quem seja detetada uma fração de ejeção abaixo de 35%.
Este sistema de alerta funciona através de uma aplicação informática e, até agora, é único no país e que tem funcionado como “um salva-vidas”. O coordenador do laboratório de arritmologia invasiva do Hospital de Santa Maria, João de Sousa, explica: “A morte súbita representa uma percentagem muito importante da mortalidade dos doentes”, mas “pode ser combatida através da aplicação destes dois princípios: sinalizar e implantar.” O cardiologista, de 60 anos, 35 ao serviço da medicina, sublinha: “A melhor maneira de prevenir esta morte é, nos doentes que têm maior risco, implantar dispositivos que monitorizam o ritmo do doente e que, no caso de ele ter uma arritmia, administram um choque de reanimação.”
Mas não basta. Nesta equação, fica a faltar a monitorização. E foi neste sentido que o laboratório de arritmologia invasiva avançou com um estudo-piloto que previa criar uma aplicação informática capaz de detetar o limiar de risco destes doentes. Chama-se Alerta FE<35% e surge exatamente como um alerta na base de dados do hospital de que um determinado doente deve ser imediatamente contactado ou intervencionado.
A sigla FE significa “fração de ejeção” e explica a teoria que está por trás da prática desta aplicação. De acordo com o cardiologista João de Sousa, “os doentes que têm maior risco de passar por estes acontecimentos [morte súbita] são aqueles que têm a função cardíaca deprimida, medida habitualmente pela fração de ejeção”, que se trata de uma forma de medir a contração do ventrículo esquerdo. “E o que os estudos identificaram é que os doentes que têm a FE abaixo de 35% são precisamente aqueles que têm maior risco” e também aqueles em que “os dispositivos [implantes médicos] podem ter uma melhor relação custo-eficácia”, acrescenta.
A fração de ejeção pode ser identificada por métodos de imagem, sendo “o mais habitual” o ecocardiograma, além de “métodos de medicina nuclear ou hemodinâmica” registados na base de dados. Esta base de dados designa-se Cardiobase, “é comum a muitos serviços de cardiologia em Portugal” e é o que permite o bom funcionamento desta aplicação informática criada no Hospital de Santa Maria, que teve a sua fase-piloto em 2017 e 2018.
A aplicação permite que, sempre que nesta base de dados é registada uma fração de ejeção abaixo dos 35%, a unidade seja notificada. E o que se segue? “Primeiro, identificamos quem é o doente – se é seguido, se tem outros exames e se já tem um dispositivo implantado”, explica João de Sousa.
Mas há três cenários a ter em conta. Caso o doente já disponha de dispositivo, caso esteja identificado e a ser seguido em consulta, “está tudo bem” e não merece preocupação maior, uma vez que o implante fará o seu trabalho. Por outro lado, se está a ser seguido por um cardiologista, mas não dispõe de um dispositivo, “o que fazemos normalmente é entrar em contacto com esse médico, dizer que há este risco e equacionar a implementação do dispositivo”.
O último cenário aplica-se no caso de um paciente que não é seguido pela cardiologia nem dispõe de dispositivo. Neste caso, o hospital faz o contacto direto com o doente e sugere que ele faça uma avaliação de cardiologia.
Com este método, é possível “salvar vidas”, afirma o cardiologista de Santa Maria, uma vez que “identifica doentes em risco que, de outro modo, não seriam referenciados para a colocação dos dispositivos”.”E sabemos que uma percentagem muito significativa destes doentes pode ter como desfecho uma morte súbita”, frisa.
Um desfecho que se prevê que aumente 73% nos doentes com insuficiência cardíaca até 2036, caso não sejam tomadas mais medidas de prevenção, alerta a Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Já que grande parte dos pacientes com insuficiência cardíaca tem idades mais avançadas – apenas 1% da totalidade tem menos de 65 anos.
Logo no decorrer do primeiro ano de funcionamento do sistema Alerta FE<35% (2017-2018), a equipa do laboratório de arritmologia de Santa Maria certificava-se de que este começava a ter efeitos práticos na vida dos doentes, mas longe de imaginar os números de casos de risco que lhe chegaram. “Foi uma surpresa ser um número tão elevado”, admite o coordenador do laboratório, João de Sousa.
No primeiro trimestre de 2017, foram detetados 337 doentes com fração de ejeção abaixo de 35%. Estes tinham, em média, 69 anos e eram, na grande maioria (75%) homens. Do total, 258 doentes eram possíveis candidatos a implante de dispositivos cardíacos, mas apenas 164 já eram portadores.
Aliás, da totalidade de doentes referenciados (337), 79 não tinham sequer qualquer indicação para implante por variadas razões, entre as quais melhorias na doença e idade avançada. No final do estudo-piloto, o laboratório referenciou 94 doentes para a implantação de dispositivos.
Mas, no decorrer do processo de criação desta aplicação, 8,5% destes 94 possíveis candidatos a implante morreram antes de terem sido encaminhados para a lista – 37,5% de morte súbita, 25% por complicações relacionadas com a insuficiência cardíaca e outros 50% por causa desconhecida.
Na opinião do coordenador do laboratório de arritmologia invasiva de Santa Maria, os dados vieram reforçar “a importância dos médicos e especialistas em referenciar os seus doentes”.
Uma cultura que é “cada vez mais” aplicada, mas que ainda sofre de lacunas.
“A implantação deste sistema fez que percebêssemos que era preciso uma sensibilização maior também dos colegas que não são da área da cardiologia, e isso tem sido feito. É importante extravasar para fora da cardiologia. Muitos destes doentes estão nos centros de saúde ou em consultas de medicina”, alerta João de Sousa. Basta que o médico de um paciente não o identifique nos laboratórios onde os sistemas são implantados para que este doente nunca seja identificado e referenciado para uma intervenção que pode salvar a sua vida.
Atualmente, o Alerta FE<35% só está ativo no Hospital de Santa Maria. Além do desconhecimento desta ferramenta, o médico João de Sousa diz que os fatores económicos e logísticos associados são uma barreira para alargar esta aplicação informática a outras unidades de saúde. Por um lado, “apesar de haver estudos que mostram que há uma relação custo-benefício boa, é sempre um custo acrescido para as administrações, porque identificar mais doentes significa mais custos”. Por outro, “se identificarmos mais doentes, vamos ter mais lista de espera e, às vezes, não há logística nos hospitais para acomodar esta lista de espera”. “É o que trava também os médicos de irem ativamente à procura dos doentes. Mas isto faz parte das normas de atuação clínica nacionais e internacionais, por isso, não faz sentido estes doentes ficarem perdidos”, argumenta.
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.