No corredor da enfermaria de cardiologia do Hospital de Santo António, no Porto, um monitor descreve o que se passa nos corações dos internados. Rosa Garcia lembra-se de se levantar da cama onde estava e passar por ele e de não ver picos. “Era a imagem da pré-morte. Fiquei muito aflita, com medo, a pensar o que me iria acontecer”, diz. Ao mesmo tempo, invadiu-a uma “serenidade”: “Eu nunca tinha tido nada no coração. Portanto, aquilo não podia ser comigo.”
Esteve internada durante 13 dias. No final, os médicos comunicaram-lhe que tinha uma insuficiência cardíaca (IC) causada por um vírus, que nunca chegou a perceber onde apanhou. O ramo esquerdo do coração estava bloqueado e ela teve de aprender a respirar de novo. Passaram-se oito anos desde este episódio. Rosa Garcia está livre de perigo e até se esquece que tem IC. Foi uma aprendizagem, porque nos primeiros tempos a vida deu uma volta de 180 graus.
Era psicóloga e psicoterapeuta, vivia num corrupio constante entre Lisboa e o Porto, onde tem casa. Viajava muito e nos tempos livres caminhava. Ainda na primavera anterior à hospitalização fez, a pé, o caminho entre Santiago e Finisterra, Espanha: 90 quilómetros. Levava a vida com o pé no acelerador. Por isso, quando, em janeiro de 2012, começou com tosse compulsiva chamou-lhe gripe e tratou-se com “as mezinhas lá de casa”, conta num jardim perto do seu apartamento em Lisboa, no Alto dos Moinhos, onde gosta de passear.
Mas a “gripe” deu lugar a “um cansaço imenso e intermitente”. “Às 08.00 estava muito cansada, às 10.00 sentia-me cheia de força.” É assim que justifica o adiamento da ida ao médico, mas começou a custar-lhe subir escadas e a ter uma dor forte nas costas. Foi quando decidiu ir ao hospital. Fez um eletrocardiograma, cujo resultado levou o clínico que a atendeu a marcar uma consulta com um cardiologista para o dia seguinte. Rosa não chegou a comparecer na consulta. Por causa da falta de ar, nessa noite, teve de chamar uma ambulância e ir para as urgências do Hospital Santo de António. A falta de ar era líquido nos pulmões e “estava na iminência de uma paragem cardíaca”, explica. Esteve 24 horas nas urgências e depois foi transferida para a enfermaria. Ao olhar para trás, Rosa ri-se. Pode ser “inconsciência total, mas não consigo levar estas coisas muito a sério”.
Quando saiu do hospital teve de fazer reabilitação cardíaca: ensinaram-na a respirar, a comer e aconselharam-na a não fazer esforços. “Pensei: e agora o que faço? Até a porta da rua era pesadíssima. Eu – que estava habituada a fazer tudo – não tinha forças para puxar a porta. Puxava um bocadinho, meti-a o pé e empurrava. Tive uma sensação de inutilidade” aos 62 anos, recorda. “Era como se tivesse ficado inválida. Parecia que tinha chegado ao fim, embora não estivesse muito disposta a isso.”
Tinha uma viagem marcada para Lyon, França, dali a pouco tempo, que lhe ia exigir estar seis meses no estrangeiro; mas depois da primeira consulta com o médico Hipólito Reis – cardiologista no Santo António – percebeu que tinha de mudar a sua vida. “Só o pensamento de ter de carregar a mala assustou-me. Foi aí que percebi que era outra pessoa. Eu não era eu.”
“Eu não conseguia pensar. A IC fazia-me ficar lenta, estava estranha, para além de estar fisicamente em baixo”, conta. Teve de deixar a sua atividade profissional, porque “não aguentava estar sentada, durante uma hora, a ouvir uma pessoa”.
Agarrou-se à esperança que o especialista lhe deu ao explicar que o seu “coração não estava danificado; as terminações nervosas tinham rebentado, mas o impulso que chegava ao coração estava excelente”, recorda.
Começaram a falar sobre opções, enquanto a IC não dava indícios de abrandar, as ondas do eletrocardiograma continuavam sem picos, e o médico sugeriu a implantação de um aparelho de ressincronização cardíaca. Uma terapêutica com “excelentes resultados” em doentes selecionados precisamente com um bloqueio no ramo esquerdo. O aparelho coordena a atividade elétrica do coração, permitindo-lhe bombear o sangue com maior facilidade, aponta Hipólito Reis.
“O aparelho tem três fios por dentro que estão ligados ao coração e o estimulam. A parte elétrica consegue fazer que a parte mecânica melhore ao fim de algum tempo, e isto traduz-se numa menor dilatação do coração e em mais força. A pessoa deixa de ter cansaço e falta de ar”, continua o cardiologista do norte, que se especializou em arritmologia e na aplicação destes aparelhos. “A D. Rosa cumpria todos os critérios, e de facto o coração dela está a recuperar.”
Rosa Garcia colocou o aparelho, quase um ano depois de saber que tinha insuficiência cardíaca, um “bocadinho debaixo da pele com anestesia local”, descreve Hipólito Reis. E foi-lhe recomendado que continuasse a andar. Rosa tornou as caminhadas em “medicamento”.
Quando está em Lisboa vai para o Parque Bensaúde, em Benfica, dar a sua volta; quando está no Porto, percorre os caminhos dos Jardins do Palácio de Cristal, desce a escadaria e segue junto ao rio Douro. Embora os primeiros tempos tenham exigido adaptação, no ano seguinte já pôde voltar a fazer tudo. “Só há uma coisa que não posso fazer: levar o braço esquerdo às costas, mas se o fizer o aparelho também começa logo a apitar.”
Para além do aparelho que lhe introduziram, trouxe para a casa de Lisboa outro, uma espécie de box com uma antena que está ligado remotamente ao hospital portuense. Coloco-o na sala, “para não ter de estar sempre a olhar para ele”, e desde que esteja a uma distância razoável o aparelho consegue captar dados. Depois, sempre que se ausenta por uns dias, tem a tarefa de encostar o emissor, que se assemelha a um rato de computador, em cima do local onde tem o seu aparelho na pele; há “um sinal de luzes”, diz, “uns apitos, e quando está tudo bem desliga-se”.
O aparelho da sala de Rosa transmite os dados a uma central que, por sua vez, os envia para o hospital a que cada doente pertence. Ao médico Hipólito Reis basta-lhe ligar o computador e aceder a uma plataforma para ver como estão os pacientes que segue, “como se estivessem no hospital”. E assim Rosa só tem de se deslocar ao hospital de seis em seis meses.
“Apesar de estar em Lisboa, se houver algum problema com o aparelho ou com a forma como este se adapta à terapêutica, temos possibilidade de saber isto 15 dias antes de descompensar. O aparelho consegue ver se o pulmão está a ganhar muitos líquidos ou não. Evitam-se casos mais graves e internamentos”, explica o especialista.
Rosa não voltou a ter de ser internada, mas também não voltou a exercer psicologia. Mudou de vida. Depois do susto, a mãe – que vivia numa quinta sozinha – já precisava de ajuda e ela “estava com o coração novinho em folha”. “Comecei eu a gerir as coisas.” A mãe tinha várias propriedades e Rosa passou a tomar conta dos inquilinos, das rendas, das obras. “A minha vida mudou radicalmente para uma atividade que eu nunca tinha tido”, confessa.
Mas há coisas que se mantêm. Continua muito ativa e sempre em viagem. Embora tenha passado a seguir com rigor “aqueles cuidados que todos os condutores têm de ter: fazer paragens, descansar e tomar qualquer coisa antes de seguir”. Aprendeu de tal forma a viver com um estilo de vida mais saudável, que tem de fazer um esforço para se lembrar das mudanças que adotou ou até da insuficiência cardíaca.
“O sentimento que eu tenho é que estou a viver aquele tempo depois do fim do jogo. Aquele tempo extra. Porque tive a sensação de que ia morrer, aquele ano deu-me a sensação de morte. Estava limitada”, explica. Mas agora “tudo tem um sabor muito melhor”, diz a sorrir.
Da medicação ao pacemaker, o que fazer quando é diagnosticada a insuficiência cardíaca. O médico Hipólito Reis dá resposta a algumas das questões mais comuns feitas pelos doentes.
A terapêutica com fármacos continua a ser a base do tratamento da maioria dos doentes com IC, no entanto, “para um grupo considerável de pessoas, o papel dos medicamentos é limitado”, aponta o cardiologista Hipólito Reis. Uma das abordagens alternativas é a inserção de um aparelho de ressincronização cardíaca, como aconteceu com Rosa Garcia.
Apesar de ser uma terapêutica com resultados comprovados, não está indicada para todos os doentes que não respondem à medicação. Serve apenas para aqueles em que se verifica um bloqueio do ramo esquerdo.
Um pacemaker evita a morte súbita. “O pacemaker biventricular apresenta um efeito positivo na redução da mortalidade dos doentes com insuficiência cardíaca”, indica o cardiologista, pois melhora a capacidade de o coração bombear o sangue, mas, em muitos casos, é necessário um cardioversor-desfibrilhador implantável para tratar as arritmias ventriculares graves.
Em 95% a 97% dos casos não é necessária uma cirurgia deste género. O acesso ao coração é feito através de um corte pequeno no peito junto ao ombro esquerdo e com recurso a anestesia local. A operação dura uma a duas horas e o doente regressa a casa um dia depois.
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.