A Quinta Vale D’Encantos não aparece no GPS. São 20 hectares perdidos no Fundão. Só lá chega quem conhece o caminho, leva informações precisas ou acontece seguir, por acaso, para Alcaide e cortar antes da linha do comboio. Foi este o lugar que José Manuel Matos, 74 anos, nascido em Angola, ex-piloto da TAP, escolheu para passar o resto da vida: “Costumo dizer que se não tivesse vindo para aqui já não estaria vivo.”
Diz isto por causa da assistência “excecional” que tem tido no Centro Hospitalar da Cova da Beira, na Covilhã, a cerca de 20 quilómetros da sua casa. Vive com insuficiência cardíaca (IC) – a doença em que o coração para temporariamente – há três anos e passou por um período de várias descompensações, mas agora está estável e confiante na evolução favorável da doença, uma vez que é vigiado 24 por dia. É um dos 31 doentes do Hospital da Covilhã que integram o Projeto de Telemonitorização de Doentes com Insuficiência Cardíaca Crónica, coordenado pelo cardiologista Luís Oliveira.
Sentado à mesa da sala de estar da sua casa com mais de três centenas de anos, José Manuel Matos abre uma pasta e começa a tirar, primeiro, um termómetro, depois o aparelho para medir a tensão, o da oximetria (que serve para medir a quantidade de oxigénio que tem no sangue), um tablet, aponta para a balança que já pousou ao lado da mesa e para o relógio digital que tem no pulso: “Mede as horas que durmo e os passos que dou.” Tudo isto lhe foi dado, há três anos, pelo hospital, quando aceitou fazer parte do programa, e desde essa altura, os aparelhos já foram trocados por outros novos e mais modernos.
Mede a oximetria: “Hoje, tenho 100%! 100% é o máximo”, explica animado. “Hoje, o Dr. Luís vai ficar contente.” Todos os dias, esteja onde estiver, José sabe que tem de fazer as medições, registá-las na aplicação do tablet e enviar para que os dados possam ser analisados. “Aconteceu uma vez ter-me esquecido de enviar as contagens, e eles telefonaram-me logo a perguntar porque é que ainda não tinham chegado”, recorda o doente.
Depois de inseridas no sistema, as medições podem ser consultadas pelos médicos em qualquer altura, mas, independentemente disso, “há sempre enfermeiros numa espécie de call center a vigiar os dados”, indica Luís Oliveira, cardiologista há 18 anos, 13 destes na Covilhã. “Se houver algum parâmetro que esteja fora daquilo que nós consideramos o intervalo normal, eu recebo um alerta a dizer que o doente está com o parâmetro alterado. Depois, podemos tomar várias iniciativas: telefonar ao doente para repetir a medição, mudar a dose de um medicamento ou pedir-lhe para vir ao hospital para o avaliarmos presencialmente”, refere o especialista.
Na única vez que a pulsação de José Manuel Matos estava acelerada, optaram pela terceira opção. “Eu enviei a pulsação e estava a cento e tal. Eles telefonaram-me e pediram-me para ir ao hospital. Lá fui, deram-me uma injeção e ficou tudo bem”, conta.
O objetivo é prevenir, tentar identificar sinais que possam dar origem a uma evolução desfavorável da IC e agir. “A telemonitorização não cura os doentes, mas permite a vigilância e evitar descompensações”, diz o coordenador do projeto criado em julho de 2017 e que, em 2019, foi distinguido com o prémio Investir em Saúde na categoria de “modelos centrados nos doentes”.
“Desde que tenho os aparelhos em casa estou muito mais descansado. Eu e eles”, admite José, que agora só vai ao hospital de três em três meses e que não voltou a ter de recorrer às urgências ou a ser internado.
A insuficiência cardíaca “é uma epidemia”, diz o cardiologista Luís Oliveira. Estima-se que, em Portugal, existam 400 mil doentes com esta patologia, 90 mil destes com doença muito grave, incapacitante. É a principal causa de hospitalização acima dos 65 anos. “E o prognóstico compara-se a alguns dos cancros mais mortíferos”, lembra, para justificar a importância deste programa, que só existe há três anos mas já deu frutos.
A partir de uma análise feita pela equipa do hospital aos doentes em telemonitorização, por comparação com o ano anterior, quando não tinham acesso a este sistema de vigilância, concluíram que as admissões hospitalares diminuíram em 62%, e os dias de internamento em 43%. Os episódios de urgência sofreram uma redução ainda mais drástica, de 85%, e a mortalidade diminuiu 43% em relação às estimativas.
Isto deve-se, explica o médico, não ao programa em si, mas à importância que os doentes assumiram no tratamento. “Os doentes passaram a sentir que têm um papel na sua doença, começaram a perceber quais são os parâmetros que interessam e o que poderão significar. Ficaram mais alerta para os sintomas e aderem muito melhor à terapêutica médica. O doente sente-se incluído, passa a ter uma atitude ativa, e, em última análise, é essa a alteração que faz que o prognóstico da doença melhore”, explica Luís Oliveira, que prevê que o projeto cresça nos próximos tempos.
Apesar da distância entre Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pera e o Fundão (mais de cem quilómetros), o fumo dos incêndios de 2017 nas três vilas do distrito de Leiria chegou até à casa de José Manuel Matos. “Andámos a respirar fumo e chovia cinza todos os dias”, diz. “Comecei a não conseguir respirar, dormia deitado porque me faltava o ar.”
Atribuiu as dificuldades respiratórias ao fumo e, embora se tenha dirigido cinco vezes ao Hospital da Covilhã, só à quinta a médica que o atendeu perguntou o que tomava para a tensão. José indicou o nome dos comprimidos que tomava, há 20 anos, prescritos por um médico para controlar as tensões arteriais “malucas que tinha durante a noite”e que resultavam de um síndrome pós-traumático que o fez deixar de voar e reformar-se da TAP pouco antes dos 50 anos. “Ela levou as mãos à cabeça e, à típica maneira brasileira, disse: “Meu deus, você tem de ir já num cardiologista.””
Marcou uma consulta, mas, três dias antes da data combinada, José teve de ir para a urgência, onde encontrou o Dr. Luís Oliveira. Tinha as pernas inchadas, custava-lhe a andar e a respirar e tinha os pulmões cheios de líquido. Tinha insuficiência cardíaca, que, segundo a primeira médica, foi provocada pelos anos a fio a tomar o medicamento para a tensão. Seguiram-se “sucessivos internamentos”, era entrar e sair do hospital constantemente”.
Andou nisto entre o verão e o Natal, até o cardiologista conseguir estabilizar a situação. No início de 2018 recomendou-lhe ir para Coimbra para colocar um cardioversor-desfibrilhador implantável, um aparelho implantado no peito que dá um choque ao coração quando este para, evitando a morte. “Desde que me puseram isto eu pareço o coelhinho das pilhas, ando, ando e não paro.”
José Manuel Matos leva uma vida ativa. A reforma foi uma oportunidade para fazer todas as coisas para as quais não tinha tempo antes, sempre a voar de um lado para o outro. Desenha, lê, está a aprender uma sétima língua por causa da sua grande paixão: os cogumelos. Na quinta já descobriu mais de 400 espécies de cogumelos, está a catalogá-las e começou a discutir o saber entre italianos, na língua materna destes, que José já começa a dominar.
E caminha, caminha muito no seu terreno à procura dos cogumelos; conhece-os de cor, a ponto de já ter sido chamado ao hospital às duas da manhã para ajudar os médicos num caso que suspeitavam ser de envenenamento por cogumelos. O dia-a-dia é passado assim, a descobrir, a investigar, a estudar, e antes de jantar já sabe: é hora do ritual, de medir todas os indicadores e enviar para o hospital. Não falha. Sabe que é uma forma de ajudar os médicos a ajudarem-no.
As Histórias contadas nesta iniciativa regressarão no início do próximo ano.
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.