As cadeiras e macas das urgências que antes eram ocupadas por doentes com as mais diversas queixas deram lugar a doentes com uma causa comum: covid-19. São cada vez menos os doentes não-covid a chegar aos hospitais. Muitos deles, “por medo” de, ao ir ao encontro do lugar onde se cuida dos casos positivos, serem infetados.
O que no caso da insuficiência cardíaca poder-se-á dizer que se está a arriscar muitas vidas, por ser uma doença que sem o tratamento adequado é imprevisível e até ser fatal. Por isso, o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, na sua unidade de Lamego, não abriu mão dos planos que tinha para 2020 e arrancou com a criação de uma consulta capaz de salvar a vida de quem sofre com esta patologia.
“O que sentimos é que doentes com outras patologias acabam por ficar em casa mais tempo e chegar ao hospital com a situação um pouco mais degradada”. Quem o diz é o internista Rui Rodrigues, de 37 anos, e coordenador da consulta de Medicina Interna de Lamego, que diariamente vê como a pandemia afeta não só os infetados com covid-19 como aqueles que não o estão.
“Os doentes não vão à urgência, atrasam, faltam às consultas”, lamenta. Os efeitos, esses, “só daqui a algum tempo” é que poderão ser calculados. Para já, tem apenas uma garantia, ali: “Não esquecemos os doentes não-covid. A maior prova é o facto de nem a pandemia ter posto um travão à ideia de iniciar uma consulta específica para doentes com Insuficiência Cardíaca nos três hospitais do centro hospitalar”, argumenta.
A consulta arrancou em setembro do ano passado e permite um acompanhamento mais direto e personalizado dos doentes, sem terem de esperar meses até serem atendidos numa consulta de cardiologia. Só no Hospital de Lamego já estão a ser seguidos cerca de 30 doentes.
“Estamos mais seguros”
Prevenir, em vez de remediar, é o lema da consulta, porque sempre que um caso de insuficiência cardíaca é remediado, o doente está a perder tempo de vida. “Se um doente foi identificado pela urgência ou pelo internamento, já é mau sinal. Quer dizer que já está extremamente sintomático. E é isso que nós queremos evitar”, explica Rui Rodrigues. São casos como o de Paulo Silva, 72 anos, que se tornou o primeiro utente desta consulta no Hospital de Lamego, quando deu entrada nas urgências desta unidade em agosto do ano passado “a uma curta distância” de ver o seu coração parar abruptamente.
Não se pode dizer que Paulo tenha levado uma vida serena. Chegado à terceira idade, reconhece que dedicou tanto ao trabalho, à oficina de mecânica que construiu no Porto, que terá posto de lado a qualidade de vida. “Andava sempre num frenesim. Por mim e pelos meus 20 funcionários. E quantas vezes acordei às duas ou três da manhã para ir buscar um camião para arranjar.”
Sintomas de que o coração não estaria bem nunca sentiu. “Nem fumo”, justifica a estranheza. Embora admita que o álcool estava presente em pelo menos uma refeição do dia. Tudo conjugado terá resultado naquele dia de agosto de 2020 em que acabou nas urgências do Hospital de Lamego com prognóstico reservado.
Tinha-se mudado do Porto para Lamego, para uma vida mais pacata. Uma certa noite, acordou com falta de ar. “Mas longe de mim pensar que seria isto. Medi a pulsação e a coisa estava mais ou menos normal”. Numa outra noite, o cenário repete-se. “Tive tanta falta de ar, que tive de ir para a janela”, recorda. Na manhã seguinte, pôs-se a caminho das urgências. Foi sujeito a exames e, neste primeiro encontro com o médico Rui Rodrigues, este pediu-lhe que regressasse uma semana depois para conversarem sobre os resultados. Saiu com um único diagnóstico: Paulo sofria de insuficiência cardíaca.
Enquanto esperou, e sem médico em Lamego, recorreu a duas clínicas privadas para a opinião de cardiologistas. “Um deles disse-me para continuar com a medicação. Outro disse-me que não tinha os dados do hospital e, por isso, pediu-me mais exames. Aqueles que o Dr. Rui já me tinha mandado fazer. Fiz, fui lá ao cardiologista e ele disse: “Bem, está tudo bem. Volte daqui a um mês ou dois”.” Entretanto, Rui Rodrigues assumiu-o como seu doente e inseriu-o na consulta que ajudou a desenhar. Caso tivesse esperado, diz o internista, “muito provavelmente ou ia entrar no hospital em morte súbita ou com edema do pulmão e morria no internamento”. “A partir do momento em que conseguimos que este doente nunca tenha estado sequer internado, é um sucesso. E como este aconteceram outros.”
Paulo foi imediatamente tratado no hospital de dia com fármacos. E procedeu-se a exames complementares de diagnóstico que “de outra forma demorariam muito”. “Se o doente está na consulta, estes exames são urgentes e conseguimos alocar alguns meios de diagnóstico complementares à consulta e torná-los muito mais eficazes.” A partir de setembro, o estado de saúde de Paulo estava estabilizado.
A partir daqui, seguiram-se consultas semanais, que depois passaram para quinzenais e que, neste momento, decorrem de dois em dois meses. “Foi possível educar o doente para a própria gestão da medicação e ele próprio já sabe identificar os fatores de alerta para me contactar. Ele sabe que tem uma porta aberta – porque, apesar de tudo, não tendo consulta marcada, damos a resposta”, diz o médico internista. Rui Rodrigues disponibiliza o seu contacto a todos os doentes, caso necessitam de ajuda mais urgente.
“Tendo a quem recorrer, estamos mais seguros”, desabafa Paulo Silva. Desde que iniciou as consultas, leva “quase uma vida normal”, embora com toda a cautela. “Nunca dormi tão bem como durmo agora.” Fruto da medicação que passou a tomar, acredita, mas também das mudanças que fez no seu estilo de vida desde que abandonou o trabalho na oficina.
Se dúvidas existem, o coordenador de Medicina Interna do Hospital de Lamego alerta: “A insuficiência cardíaca é uma doença que mata, e mais que a maioria dos cancros.” A Sociedade Portuguesa de Cardiologia prevê mesmo a morte súbita de 73% dos doentes com insuficiência cardíaca até 2036, caso não sejam tomadas medidas de prevenção.
Contudo, nem só o desfecho preocupa os médicos: “Não só pode causar morte, como antes disso vai causar uma quebra de qualidade de vida tremenda aos doentes, com os internamentos recorrentes.” Internamentos que acarretam custos elevados para os doentes e para os hospitais. “São doentes que procuram muitas vezes o seu médico e que, quando procuram em fases tardias, são internados em fases muito avançadas, e em cada internamento o prognóstico cai abruptamente”, ficando mais debilitado, diz Rui Rodrigues. Por isso, é perentório em dizer que “a doença não começa no hospital” e o conhecimento sobre ela deve chegar o mais cedo possível aos doentes e aos médicos de família, para que possam mais rapidamente identificar esta patologia.
O que a nova consulta do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro trouxe foi um trabalho de referenciação que anteriormente não existia. Antes disso, a cardiologia dava uma “resposta parca”, uma vez dedicada a várias outras patologias em simultâneo, e “os doentes eram internados ou apenas identificados na urgência”. “E, quando recebiam alta, das duas uma: ou eram referenciados novamente para o médico de família ou eram referenciados para uma consulta de medicina interna ou cardiologia, mas que não era especializada. Ou seja, não era capaz de lhes dar uma resposta eficaz.”
E que diferença fará, afinal, uma consulta organizada? Além de possibilitar a formação de enfermeiros, coloca os doentes em seguimento mais próximo. “E mais do que isso: eu consigo seguir um doente quase semanalmente, se assim for necessário, porque pusemos o hospital de dia a funcionar também para a insuficiência cardíaca.”
Por isso, esta consulta nasce como uma forma de dar resposta aos pequenos problemas, antes de eles se tornarem grandes. Dentro de um ano, o objetivo estatístico do centro hospitalar é diminuir os internamentos provenientes desta patologia. Atualmente, estão a operar nesta consulta seis internistas: um em Chaves, um em Lamego e os restantes em Vila Real.
Futuramente, Rui Rodrigues diz que a ideia é também “alocar médicos de família de Lamego para fazer, todas as semanas, uma reunião com todos os clínicos, para se saber que doentes é que potencialmente beneficiam da introdução na nossa consulta”.
Coração de Portugal é uma iniciativa do DN, JN e TSF com o apoio da Novartis e da Medtronic
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.