Cláudia Campos, 46 anos, tem, em média, quatro a cinco internamentos por ano devido a complicações nos pulmões ou no coração. Tem um enfisema pulmonar grave e, há um ano, diagnosticaram-na também com insuficiência cardíaca. Chegou a ter de ir às urgências todos os dias da semana; sem que os médicos soubessem o que lhe fazer.
Neste ano, ainda não teve nenhuma hospitalização por estas causas, graças a um tratamento quinzenal que faz na Unidade Integrada de Insuficiência Cardíaca do Hospital de São Bernardo, em Setúbal. É um dos rostos mais familiares para a equipa desta clínica, que nasceu há três anos naquele hospital.
No dia em que falamos com Cláudia, não é dia de tratamento, mas – apesar das muitas horas que aqui tem passado – disponibilizou-se a vir, mais uma vez, ao Hospital de São Bernardo para falar sobre como é ser acompanhada por uma equipa que está sempre de olho no seu coração; mesmo quando está em casa.
Cláudia chega ao hospital de cadeira de rodas, com a botija de oxigénio pendurada. Assim que vê a doutora Sara Gonçalves sorri e pergunta-lhe logo pelo filho. A cardiologista desbloqueia o telemóvel e mostra-lhe uma foto. “Está tão grande!”, reage a paciente, que vai entrando na sala de reuniões da administração, uma espécie de auditório com as cadeiras todas em roda, e cumprimenta as enfermeiras Ana Sousa, Andreia Soares e o médico de medicina interna Pedro Carreira.
Conhece-os a todos e eles a ela. Consoante o seu estado é acompanhada por quem lhe pode ser mais útil, estando toda a equipa a par da sua evolução clínica. “Basta falar com uma doutora que no dia seguinte já todos sabem o que se passa comigo”, testemunha Cláudia Campos. Esta é uma das principais características do projeto: os doentes são o centro de tudo. Desde que os diagnosticam – antes de um episódio grave, de preferência – até ao local onde são tratados (nos cuidados primários, paliativos ou hospitalares), às explicações sobre o que é a insuficiência cardíaca, como podem adotar um estilo de vida saudável, à monitorização constante e aos cuidados domiciliários. O objetivo é “melhorar a qualidade de vida dos doentes”, explica o internista Pedro Carreira, um dos membros fundadores da equipa.
“A sensação que nós tínhamos era a de que havia um seguimento fragmentado do doente. Não os conseguíamos agarrar, e se se perde tempo com estes doentes torna-se muito difícil estabilizá-los”, continua o especialista. “Os que estavam a ser seguidos nos cuidados primários, nós não os conhecíamos e só sabíamos deles quando vinham à urgência já descompensados, quando se calhar até podíamos prevenir essa descompensação.
O dia-a-dia destes doentes era feito de acordo com as descompensações. Agora, o doente sabe sempre a quem recorrer.”
O hospital já tinha uma consulta de insuficiência cardíaca, mas esta era da exclusiva responsabilidade da cardiologia. A novidade do projeto que esta equipa apresentou à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) é precisamente a multidisciplinaridade. A equipa é constituída por cardiologistas, médicos de medicina interna e familiar, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas – e outro traço de singularidade é a integração dos cuidados de saúde primários. O hospital passou a articular-se com as unidades de saúde familiar (USF) da zona, a dar formação aos médicos para estarem atentos aos sintomas de IC e a ceder testes de rastreio para a doença, para além de partilharem uma plataforma de alerta para encaminhamento dos pacientes.
“Nós, médicos de família, estávamos muito vocacionados para o tratamento, mas não tínhamos tanta sensibilidade para o diagnóstico, para o rastreio precoce. Este projeto veio mudar isso”, admite, quando entra na conversa por videochamada, Madalena Rodrigues, médica de família em Sesimbra, numa USF que tem um protocolo com o hospital.
Os resultados traduzem-se em números, que a equipa mostra com orgulho. Têm 623 doentes ativos; 34 chegaram-lhes depois de um internamento, mas só três sofreram um reinternamento neste ano.
Em 77% dos casos têm conseguido antecipar períodos de doença mais aguda, evitando idas às urgências ou internamentos. A adesão à terapêutica é elevada (93%, sendo que os outros 7% estão relacionados com dificuldades económicas ou doença psiquiátrica). E “o universo de hiperfrequentadores [pessoas que estavam constantemente a dar entrada na urgência do hospital] deixou de existir”, aponta o médico Pedro Carreira.
A pandemia de covid-19 não lhes abrandou o ritmo. Pelo contrário, em 2020 já fizeram mais de duas mil sessões no hospital de dia. Triplicaram o número de atendimentos, porque, com receio de que os doentes não os procurassem por medo de ir ao hospital, foram eles ter com os doentes.
Mas mais importante do que os números é a “gratificação de sentir que os doentes estão a ser ajudados”, lembra a cardiologista Sara Gonçalves, que todos apontam como um dos grandes pilares do projeto. “Os nossos doentes são diferentes”, acrescenta Pedro Carreira: “Nós valorizamos muito a educação e os nossos doentes sabem falar sobre a doença.”
A enfermeira Ana Sousa – uma das profissionais que atendem o número direto que dão aos doentes para o caso de terem alguma dúvida ou problema – confirma: “A maior parte dos nossos doentes estão bem instruídos. Às vezes, não sabem bem o que têm, mas sabem que têm de ligar para dizer que não se sentem bem.” Cláudia Campos é a prova disso mesmo. Fala sobre o seu estado clínico com muito à-vontade e admite que está sempre em contacto com a equipa. “Qualquer dúvida, telefono logo, porque sei que estão aqui para me ajudar”, diz.
Cláudia tem de estar em permanente vigilância, por ter o organismo muito fragilizado. Começou por ter uma paragem cardíaca em 2001 enquanto estava a dormir. Depois, descobriram-lhe o enfisema pulmonar, que a deixou com falta de ar. Foi candidata a um transplante de pulmão, mas, durante os exames de preparação, comunicaram-lhes que estava demasiado frágil para avançarem com a operação. “Foi como se me tivessem tirado o tapete do chão”, recorda Cláudia, que viria a ter a seguir um acidente vascular cerebral (AVC) do qual recuperou na totalidade. Por uma razão ou por outra, passava metade do ano no hospital.
“Passámos uma fase muito complicada com a Cláudia. Estávamos a ficar sem opções de tratamento”, explica a cardiologista Sara Gonçalves. “A Cláudia estava a vir ao hospital quatro ou cinco vezes por semana e passava aqui o dia todo a fazer medicação intravenosa. Estava a ficar cada vez mais deprimida e não tinha grande qualidade de vida.”
A unidade integrada de insuficiência cardíaca deu-lhe uma oportunidade. Propôs-lhe uma nova terapêutica que exige que venha ao hospital duas vezes por mês. Chega às 10.00, faz análises, passa seis horas a fazer o tratamento e pode regressar a casa. Uns dias antes da terapia já sente que está “a precisar de gasolina”, mas na semana seguinte tem “uma vida completamente normal”.
“Sinto-me bem. Tenho as minhas limitações, mas é mesmo assim”, conta. Cláudia Campos voltou a poder conduzir; quando se sente melhor dá uns passeios, vai beber um café com uma amiga e lê. As tardes estão ocupadas com a fisioterapia, que uma equipa do hospital lhe vai fazer a casa. Só há uma coisa que lamenta não poder fazer: trabalhar.
É licenciada em Gestão; até 2001 trabalhou num banco e depois, por não poder mais levantar-se às 06.00 para apanhar o comboio de Setúbal para Lisboa dado o seu estado de saúde, mudou-se para um gabinete de contabilidade setubalense. Mais tarde teve também de deixar esse gabinete. “Entristece-me muito não poder trabalhar”, confessa, “mas há outras coisas com as quais me posso ocupar.”
“Qualquer pessoa com os meus problemas tem de viver um dia de cada vez. Não vale a pena estarmos a pensar que vamos morrer. Vamos todos morrer. Temos de aproveitar a vida da melhor forma. Quando me disseram que não podia ser transplantada fiquei revoltada, mas depois pensei que tenho de confiar que os médicos me querem salvar.”
Descansa-a saber que se sentir mal pode telefonar e que está a ser vigiada. Cláudia é uma das 17 doentes do programa de telemonitorização da clínica. O hospital deu-lhe um estojo com aparelhos para medir diariamente alguns indicadores, como a tensão, a saturação de oxigénio, o peso. Esses aparelhos estão ligados a uma aplicação no telefone que, de forma automática, envia toda a informação diariamente para o hospital, onde há uma equipa a vigiar os sinais do doente.
“Entre os doentes que estamos a telemonitorizar, nenhum tem vindo ao serviço de urgência porque, de cada vez que eles começam a descompensar, telefonamos logo e iniciamos um tratamento de prevenção”, explica a enfermeira Ana Sousa.
Este é um passo fundamental para evitar os internamentos, um dos grandes objetivos da equipa, que tem as prioridades bem definidas: ganhar qualidade de vida para os doentes com insuficiência cardíaca é a primeira de todas. Hugo Viegas, outro dos internistas da equipa, lembra que este “é considerado um serviço prioritário” e com um grande “potencial de crescimento. Ideias não faltam. Gostávamos de ter um espaço físico para o internamento destes doentes e de acabar a formação às USF e ir para os centros de saúde”.
Todos acreditam que isto é possível. O principal está feito: esta equipa “ousou quebrar barreiras”, aponta Pedro Carreiras. Quiseram juntar-se e trabalhar, independentemente do cargo que ocupam no hospital, o mais importante é o doente.
Coração de Portugal é uma iniciativa DN, JN e TSF com o apoio Novartis e Medtronic
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.